(Especial Oscar 2013: crítica do filme “Django Livre”)

Aviso: A crítica contém spoilers! Só leia se você já assistiu ao filme ou se não liga de saber sobre alguns fatos importantes antes de vê-lo.

Quentin Tarantino, o grande rei dos amantes de filmes de ação com muito sangue e violência, dos fãs de diálogos inusitados, inteligentes, satíricos e pungentes, vem ascendendo há muito tempo e se superando a cada filme que realiza, seja como roteirista, diretor, ou ambos, mas, agora não tem como ter dúvidas de que ele conseguiu atingir o auge de sua carreira ao fazer um filme ainda melhor que o brilhante “Bastardos Inglórios”. O melhor e mais delicioso banho de sangue “Tarantinesco”, Django Livre, com certeza é o melhor trabalho de sua carreira (pelo menos até ele fazer seu próximo filme).
“Django Livre”, além de uma denúncia aos males da escravidão e aos escravocratas americanos, é uma grande homenagem aos westerns spaghetti, ou seja, os filmes de faroeste realizados por diretores italianos, muito populares nas décadas de 60 e 70. Esse gênero ficou conhecido como uma forma de o cinema europeu ganhar em cima dos westerns americanos, que estavam com a popularidade extremamente baixa em Hollywood na época.
O filme se passa “em algum lugar do Texas” no ano de 1858, pouco mais de dois anos antes da guerra civil americana (conhecida como Guerra da secessão, que durou de 12 de abril de 1861 a 09 de abril de 1865), e conta a fantástica história de Django (Jamie Foxx), um escravo com um passado devastador que é encontrado e “comprado” pelo caçador de recompensas King Schultz (Christoph Waltz), uma espécie de coronel Landa – seu papel em Bastardos Inglórios – mais contido e que trabalha para o lado certo.
Schultz é um antiescravagista, portanto, sua compra tem um motivo e veio junto a uma promessa. Django é o único capaz de ajudá-lo a encontrar dois assassinos, os irmãos Brittle, e, segundo a promessa, após contribuir para capturá-los, “vivos ou mortos”, ele receberá a sua alforria e ficará livre para ir atrás de sua esposa, Broomhilda Von Shaft (Kerry Washington), uma escrava rebelde que fala alemão.
Após a captura, os dois, já amigos, optam por não se separar e continuam juntos atrás de pistas sobre o paradeiro da esposa de Django, enquanto seguem em busca dos criminosos mais procurados do sul, sempre lembrando que, “quanto mais perigoso, maior a recompensa”.
A procura por Broomhilda acaba levando os dois caçadores de recompensa até Candyland, uma propriedade agrícola de um homem terrível, chamado Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), atual dono da tão procurada esposa, cuja principal diversão é assistir a lutas “mandingo”, ou seja, seus escravos, preparados pelo treinador Ace Woody, lutando até a morte na sala de sua casa.
Sob falsos pretextos, eles conseguem se aproximar de Calvin e explorar a fazenda, porém, as mentiras acabam chamando a atenção do mordomo Stephen (Samuel L. Jackson), um repulsivo e desprezível negro que renega e explora sua raça.
Quando eles são descobertos e o cerco se fecha para os dois, o sangue começa a jorrar de verdade. O mais delicioso banho de sangue “Tarantinesco”, que já vinha desde o começo do filme, vem de forma a mostrar ao espectador o porquê este é o melhor trabalho da vida do diretor.
“Django Livre” se tornou, em apenas quatro semanas, o filme mais lucrativo do diretor americano. No primeiro mês em cartaz, o filme já havia arrecadado 130 milhões de dólares, levando “Bastardos Inglórios” para a segunda colocação, com 120,5 milhões de dólares.
Um fato neste filme que chama a atenção dos fãs do cinema de Tarantino é que o personagem principal é o primeiro do diretor a ser motivado pelo amor, diferente de todos os seus outros trabalhos, com personagens pautados pela vingança.
Outra coisa muito curiosa no filme é a aparição do grande Franco Nero, um ator italiano conhecido principalmente por seu papel no filme “Django”, de 1966. Coincidência? Não. Está mais para uma homenagem. Tarantino não quis recontar a história de “Django”, mas sim apenas reutilizar o nome do personagem e a temática sócio-cultural dos tempos do faroeste.
Claro que a piada em torno disso não podia faltar. A cena em que Jamie Foxx “ensina” Franco Nero, no papel do italiano Amerigo Vessepi, a pronunciar o nome Django, seu personagem há quase 50 anos atrás, é genial e muito bem sacada. “O D é mudo, seu caipira miserável”.
Entre as muitas piadas e sátiras inteligentíssimas feitas ao longo do filme, outra que não pode deixar de ser comentada é a “tiração de sarro” com a Klu Klux Klan, uma organização racista secreta de extrema-direita que apoia a supremacia branca e atua principalmente no sul dos Estados Unidos.
Como na época em que se passa o filme a KKK ainda não havia sido criada, a sátira foi feita com alguma espécie de grupo precursor da facção, ainda desorganizada. No entanto, a referência foi ótima, afinal, o grupo causou muitas dores de cabeça a Django no filme de 1966.
O primeiro Klan efetivo nasceu apenas após a Guerra Civil norte-americana, em 1865, no estado do Tennessee, e durou até 1870, com 550 mil membros - soldados veteranos que haviam lutado pelos estados do sul na Guerra da Secessão - que promoviam atos de violência contra os negros libertados. O segundo Klan foi criado em 1915 no estado da Geórgia e durou até 1944, com a sua doutrina misturando agora nacionalismo e xenofobia, com cerca de quatro milhões de membros que violentavam imigrantes, judeus e negros. O terceiro e último Klan nasceu em 1945 e existe até hoje, mas perdeu a sua força e conta com aproximadamente oito mil membros.
Para quem não sabe, a Klu Klux Klan é conhecida pelos capuzes brancos, usados pelos componentes da facção a fim de não serem reconhecidos posteriormente. Com isso, em seu filme, Tarantino brincou com o fato de que a mulher de um dos membros da KKK, que havia feito os buracos para os olhos nos capuzes, não havia realizado seu trabalho corretamente, deixando eles sem conseguir enxergar direito e causando uma revolta geral no grupo, na qual todos tiram seus capuzes e mostram o rosto, deixando o marido da moça furioso. Simplesmente hilário.
Estes atos de extrema coragem do diretor (que ninguém mais tem), de brincar e tirar sarro de certas coisas e pessoas, são magníficos e dão o que falar, como no filme “Bastardos Inglórios”, no qual um grupo de judeu-americanos metralha o líder nazista Adolph Hitler, que morre com o rosto todo desfigurado dentro de um cinema.
Como se pode ver, Quentin Tarantino nunca está longe das polêmicas e dessa vez não podia ser diferente. A brincadeira com a KKK foi bem vista e elogiada (provavelmente não pelos atuais integrantes do grupo, mas enfim...), porém, o uso da palavra “nigger”, insulto racista semelhante a “crioulo” em português, durante o filme inteiro, além da abordagem da escravidão em um formato western, incomodou algumas pessoas, especialmente o diretor de cinema Spike Lee, que já tem problemas com Tarantino desde o lançamento de “Jackie Brown”, uma homenagem do diretor ao gênero Blaxploitation: “não posso comentar muito porque não vou assistir ao filme. Tudo o que posso dizer é que ele é desrespeitoso aos meus ancestrais. Mas esse sou eu... Não estou falando por mais ninguém. A escravidão nos Estados Unidos não foi um western spaghetti de Sérgio Leone, mas um holocausto. Meus ancestrais foram escravos roubados da África. Eu os honrarei.”
Esta crítica do diretor Spike Lee é uma grande bobagem, afinal, o filme de Tarantino é uma importante denúncia aos males da escravidão e aos escravocratas americanos, que retrata com fidelidade as atrocidades e os absurdos que faziam com os negros naquela época. Se amenizar os atos dos donos de escravos, vai dar a impressão ao espectador que a escravidão era mais tranqüila do que todos imaginam, mas não era, era muito pior, portanto, a realidade tem que ser mostrada para as pessoas poderem entender o que aconteceu realmente. O filme quebra preconceitos, e não os alimenta.
 Em relação à palavra “nigger”, ela ajuda a contextualizar uma época e uma situação. Se ela era usada mesmo, porque não colocar no filme? O filme tem que retratar a realidade.
Outro fato, além da fidelidade aos costumes da época, que dão vida à produção cinematográfica é a sua trilha sonora. Perfeita. Essa é a palavra. Ela não poderia ser caracterizada de outra forma. A mistura das músicas típicas de faroeste, junto com hip hop e rap ficou sensacional, épica, memorável... As cenas com uma trilha não tão bem escolhida com certeza perderiam metade do efeito.
Esse é o primeiro filme de Tarantino que não foi editado por Sally Menke, que morreu misteriosamente em uma trilha de caminhadas na cidade de Los Angeles, na California, em setembro de 2010, possivelmente por causa do calor, que ultrapassava os 45 graus Celsius. A editora já tinha sido indicada duas vezes ao Oscar de Melhor Edição por seu trabalho nos filmes “Bastardos Inglórios” e “Pulp Fiction”. “Django Livre” foi editado por Fred Raskin, conhecido pelo seu trabalho na trilogia “Velozes e Furiosos”.
Além de dirigir e escrever o roteiro (original) da produção cinematográfica, Quentin Tarantino, como de costume, também aparece atuando. Entre a sua primeira aparição e sua morte não tem mais do que 10 minutos, tempo suficiente para carimbar, assinar e dar o brilho que só ele tem à sua mais nova obra de arte.
Falando em atuação, a grande estrela desse filme não foi o ator principal, mas sim o austríaco Christoph Waltz, que deu um show do começo ao fim.
Waltz ganhou o Oscar de Melhor Ator Coajuvante pelo seu papel de Coronel Hans Landa, no filme “Bastardos Inglórios”, após conseguir apagar o grande ator Brad Pitt e puxar toda a atenção para si, com uma atuação magnífica de cair o queixo. Dessa vez não foi diferente.
Jamie Foxx se saiu extremamente bem como ator principal e, com certeza, foi a escolha certa, pois nenhum faria melhor (nem mesmo Will Smith, que foi o primeiro nome para o papel, mas o recusou por estar produzindo Homens de Preto 3), mas, mesmo assim, ele acabou sendo ofuscado em alguns momentos do filme. Este é o problema de trabalhar ao lado de Waltz. Um mestre... Um grande mestre da atuação...
Leonardo DiCaprio, no papel de Calvin Candie, também deu show e mostrou como se faz o papel de um vilão terrível, apesar de não ter sido muito reconhecido pela crítica internacional.
Algo curioso sobre a participação do ator no filme talvez seja que ele conseguiu, sem querer, fazer com que pelo menos em uma cena o sangue seja real. Durante a gravação, em uma cena na qual seu personagem tem que socar a mesa, ele acerta um caco de vidro e corta a mão. Aproveitando a circunstância para dar mais vida ao filme, o ator esfrega o próprio sangue no rosto da atriz Kerry Washington, em uma cena de tortura psicológica contra ela, Schultz e Django.
Outra estrela frequentemente esquecida pelo Oscar é o grande Samuel L. Jackson, que chamou a atenção no papel do mordomo Stephen, no qual ele estava irreconhecível fisicamente, mas brilhante como de costume. Seu personagem representa o tipo de negro mais odiado por eles mesmos: traidor e explorador da própria raça. Um dos vilões mais repulsivos e asquerosos que o cinema já viu nesse contexto.
Ainda em “esquecidos pelo Oscar”, voltamos ao grande Tarantino, que, apesar de ter sido indicado na categoria de “Melhor Roteiro Original”, foi esquecido no prêmio mais importante da Academia: Melhor Direção.
Que o Oscar não vai com a cara do Tarantino, todo mundo já sabe, mas é revoltante ver as inúmeras injustiças que fazem com ele, como no Oscar de 2010, por exemplo, quando ele estava concorrendo a Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original e Melhor Filme, com “Bastardos Inglórios”, e perdeu os três para o meia boca “Guerra ao Terror”, dirigido por Kathryn Bigelow e escrito por Mark Boal.
Esse ano, injustamente, nem indicado para o prêmio de Melhor Diretor ele foi, e, nas outras duas categorias, infelizmente, não deve ocorrer nada de diferente do que aconteceu em 2010, tornando o prêmio de Melhor Ator Coadjuvante, para Christoph Waltz, a única chance do filme de levar um Oscar em uma das categorias principais. O filme ainda concorre em Melhor Fotografia e Melhor Edição de Som, somando cinco indicações.
A única vez que reconheceram o trabalho de Tarantino de verdade foi em 1995, quando ele ganhou seu único Oscar: Melhor Roteiro Original, por Pulp Fiction – Tempos de Violência.
Mas, quem sabe dessa vez essa história não muda e ele leva para casa, além de mais uma estatueta de Melhor Roteiro Original, a de Melhor Filme pela primeira vez?! Afinal, esse é o melhor trabalho do diretor... O mais delicioso banho de sangue “Tarantinesco” e que, portanto, merece ser reconhecido.

Arthur Ordones

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3 Responses so far.

  1. Unknown says:

    Também sou fã do Tarantino e aprecio sua criatividade em retratar histórias fantásticas e normalmente impossíveis. Palmas para ele, para os atores do brilhante filme e para o autor dessa crítica. Entusiasmado como sempre, exagera em alguns pontos mas nos brinda sempre com informações históricas e importantes para o entendimento não só do filme como da época que ocorre.

  2. Li sua crítica, mas senti falta daquela cena clássica sobre eugenia explicada por Di Caprio durante o jantar. Ele se demorou a explicar sobre a suposta superioridade dos brancos em face de sua compleição física, formato do cérebro por exemplo. Aliás, aqui no Brasil foi muito difundido está ideia aberrante por médicos tais quais Nina Rodrigues, assim por políticos do naipe de um Oliveira Vianna.
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    Outra coisa que não me passou despercebida foi a escolha da roupa pelo Django. De o porquê ter sido o Azul! Bom, ouvi falar de um filme que ainda não assisti, eu confesso, um filme muito famoso de 1993, chamado "A Liberdade é Azul". Tarantino deve ter se inspirado naquele filme no tocante a roupa. E para concluir, quando ele aceita a proposta do amigo alemão de teatralizar na função de Traficante de escravos, ele explica que um traficante negro de escravos negros é uma função que está abaixo até mesmo dos negros da Casa Grande. No filme mesmo tem um exemplo deste tipo de negro da Casa Grande, qual seja, o mordomo Sthepen, muito ligado ao personagem de Di Caprio. O próprio Malcon X citou num filme biográfico as características do negro da Casa Grande e você verá como se adéqua ao Sthepen.

  3. Concordo, Cinara!!! A cena sobre eugenia explicada por DiCaprio realmente me chamou muita atenção também, mas acabei esquecendo de comentar na crítica... Muito bem lembrado! Eu ainda não assisti "A Liberdade Azul", mas também já ouvi falar muito bem! Confesso que não havia relacionado algo assim com a escolha da roupa feito pelo Django! Achei muito interessante! Obrigado pelo comentário!